Começando endereçando o elefante na sala: eu detesto o gênero “moba”. Não me entendam mal: eu acho o mapa/mod “DotA”, do Warcraft 3: Frozen Throne, uma obra-prima na categoria “modding” em jogos, e um “milestone” no que diz respeito a colaborações intelectuais/criativas entre mega corporações e usuários “civis” do produto – não necessariamente como objetivo original dessas mega corporações. Talvez o apex do que se pode exemplificar esse tipo de evento, o mod final, ou a gênese do modding moderno. O mapa Defenders of the Ancients era mais popular do que o jogo original em que foi baseado e tornou-se maior do que ele – tanto que originou o gênero citado anteriormente, o “Multiplayer Online Battle Arena” (MOBA).
No universo dos lucros trimestrais, o livre mercado prontamente iniciou todo o processo de cuspir (ou regurgitar) semanalmente sua contribuição de releituras da proposta.
Surgiu um clusterfuck (rebosteio) de clones e outras megacorporações tentando emular o “MOJO” – obviamente sem muito sucesso. O subproduto do gênero, desde sua introdução, foi a crescente concentração de uma “fossa” do pior que a adolescência e a solidão podem produzir num quarto fechado: esses que hoje em dia conhecemos como “jogadores tóxicos” (ahem Incels). É por essas que eu, nos últimos 10 anos, desenvolvi certa aversão persecutória a qualquer menção desse tipo de jogo – Inclusive o League of Legends que, apesar de ter jogado por algumas horas entre 2007 e 2010, não prendeu minha atenção muito além disso.
A RIOT Games talvez tenha sido a empresa que tenha sintetizado o melhor kibe da proposta do DotA. Claro, sem mencionar o lado financeiro da coisa.
Tendo começado como uma espécie de “cópia xing ling” da Blizzard, a RIOT, desde o princípio, demonstrou seguir à risca o modelo de produção da Blizzard em termos de qualidade de acabamento, o “polishment” da coisa, além de fazer um investimento consistente no setor das sequências cinemáticas do “folclore” do jogo – essas eu admito que acompanhei ao longo da década porque o link sempre chegava na minha mão por causa da alta concentração de amigos otakus e gamers ao meu redor (<3). Por mais que, no fim das contas, todo o panteão de 456059 personagens que o jogo foi acumulando com os anos seja apenas mais um kibe de alguma coisa que já existe, a construção dos cinemáticos caracterizam suficientemente os citados clones de *insira personagem bem estabelecido no mythos popular* para serem algo mais na margem da “homenagem” do que um kibe direto per se.
Mas, mesmo assim, de todos os lugares possíveis e imagináveis, eu jamais diria que algo tão refinado, tão “maior do que sua origem” viria desse contexto, desse “esgoto corpo-cultural” que é a máquina de capitalização em jogos “free to play”. Parabéns RIOT Games: todo o dinheiro que vocês conseguiram em cima de gachas e skins especiais nos últimos 10-15 anos finalmente foi revertido em algo que, ouso dizer, vai ficar marcado como mais um milestone da produção cultural na categoria de animação.
SPOILERS AHEAD
O roteiro tem um escopo grandioso (high stakes), tanto no setup do “universo” (Runeterra) onde a história ocorre, quanto na qualidade da trama e os dramas de cada protagonista. Os produtores conseguiram abordar diversos aspectos e paralelos com o micro e o macro da experiência humana dentro de um contexto mais “crítica social” sem forçar tanto a barra (não é um wokewash, é o real deal). Questões essas abordadas sem o maniqueísmo confortável de algumas narrativas distópicas, que vão desde tragédias que configuram algumas síndromes de transtorno pós-traumático na infância, relações parentais em diversas esferas, relações socioeconômicas, acesso à tecnologia ou recursos, até o idealismo acadêmico vai sofrendo danos no processo da sua “ascensão” à esfera de impacto no contexto político e a relação dialética de todo esse processo.
Como tudo “é um remix” de outras coisas que já foram feitas, é possível reparar diversas influências. Uma que retorna constantemente é a de Fullmetal Alchemist, que aborda toda essa questão de “alquimistas do estado”, bem essa fronteira “magia e ciência” a serviço do governo. Aborda a belificação de iniciativas de inovação em ciência/tecnologia/”magia”, e seus tabus e paradoxos entre progresso tecnológico e genocidio. O idealismo progressista e sua fruição material retorcida na lógica de políticas de mercado e imperialismo.
Com os personagens de Jace e Viktor, somos apresentados aos conflitos de progresso tecnológico para o bem comum e o progresso tecnológico apenas para a elite. Jace é um acadêmico idealista, persegue o progresso comum e igualitário através do seu estudo da tecnologia “hextech” – uma área de estudos vista como tabu pelo conselho, pois usa gemas mágicas (conhecimento banido de Piltover) no desenvolvimento de tecnologias de ferramentas e transporte. Viktor, seu amigo e sócio, abraça o idealismo de Jace e aposta na pesquisa da tecnologia “proibida”. Ao longo da temporada, vemos como algumas questões ideológicas entre os dois amigos divergem, e como Jace vai perdendo sua inocência e parte do seu idealismo ao ser exposto a estrutura de favores e sanções políticas. Existem nuances entre relações de poder e entre interesses e indivíduos nas diferentes camadas sociais. A cidade de Piltover, onde toda a temporada se passa, é uma reconhecível caricata metrópole tecnocrata com todo o visual inspirado numa mistura de Blade Runner e Bioshock Infinity, uma fusão entre conceitos visuais do cyberpunk e steampunk. Está tudo lá: o avanço tecnológico e seus impactos na sociedade, segregação e desigualdade social, crime, corrupção e muito neon. Como é de praxe de qualquer (boa) “alguma coisa-punk”, o cenário é apresentado sempre com a exposição de problemas socioeconômicos inerentes à lógica do “livre mercado laissez faire” ou “desregulado”, mas sem maniqueísmos ultrapassados. No caso em Arcane, vemos uma caracterização mais humanizada das relações dos diferentes protagonistas em seus diferentes contextos de classe. Problemas políticos contextualizados e inerentes aos dramas pessoais, reforçando as questões de problemática estrutural.
O setup do cenário leva além o contexto do “show, don’t tell” (mostre, não conte/explique): em poucos minutos entendemos o passado da cidade e seus sucessivos conflitos civis. A relação entre diversas personagens estão atreladas e retornam a esse episódio da história da cidade. No lado alto, o conselho e a aristocracia decidem os rumos comerciais e politicos da cidade, enquanto, na subferia, Vander e Silco controlam o mercado negro e a produção industrial da substancia “cintila”.
O roteiro é bem escrito para um produto de faixa etária mínima de quatorze anos. Apesar de conter violência gráfica, é tudo relativamente bem maduro, pelo menos o suficiente e sem glamourizar “a violência” como algumas adaptações de outros jogos para animação (como Castlevania). Quando conteúdo mais violento é apresentado, é feito de maneira bem “seca” ou “realista em sua física”, em alguns momentos, tornando difícil não sentir algumas pancadas com certo reflexo de dor, empatizando com os ferimentos dos personagens – na maioria dos casos, não desejamos ver personagens que simpatizamos se digladiando brutalmente. Esse paradoxo é gritante na cena da ponte, quando Ekko reencontra Jinx pela primeira vez desde os eventos que causaram a morte de Vander e a cisão entre Vi e Powder. Apesar da composição ser brilhante e o setup do embate ser climático, é impossível não ficar de coração partido quando Ekko enxerga nos olhos de Jinx a sua amiga de infância.
Maniqueísmos, ou ” Moral Preaching”, são difíceis de identificar. Todos os “lados” da história têm motivações coerentes para agirem da maneira que agem – até os personagens mais “moralmente” desprezíveis tem um “prólogo” expositivo coerente e verossímil na composição de caráter. Silco é um “antagonista” cativante e com objetivos compreensíveis – ele quer derrubar o lado de cima – custe o que custar e, em contraponto, apresenta uma relação paternal com Jinx que me convenceu mesmo de sua legitimidade no capítulo em que Singe precisa executar procedimentos “não ortodoxos” para salvá-la. O personagem da Jinx eleva o arquétipo “Harley Quinn”, de onde seu design foi baseado, causando tensão real a todo momento que está na cena. Sua instabilidade emocional é tão convincente que não dá para ter certeza se ela vai explodir alguma coisa ou alguém, ou se é apenas mais uma punchline doentia. Foi realmente interessante o crescimento tanto do personagem como da “ideia” deste na adaptação do jogo para a série. Apesar de ser um “conto preventivo” para expor alguns efeitos de negligência parental e traumas de infância, considerando certo perfil de parte do público, Jinx acaba correndo o risco de atrair uma espécie de idolatria, semelhante à que ocorre com personagens como Coringa e Tyler Durden. Ao invés de servir como reflexão sobre patologias psicológicas e suas causas, acaba se tornado “figura modelo”.
A animação é impecável, o cuidado com expressões e micro expressões faciais são impressionantes e os personagens transmitem até os gestos mais sutis com elegância e maestria. As mudanças mais sutis no comportamento, os reflexos e tiques são de finíssimo acabamento.
Nota final, 9.9
Sim, eu tirei 0.1, não por não gostar de Imagine Dragons (eu preferia que fosse Linkin Park, se eles ainda existissem), mas porque tiveram o disparate de botarem os malucos digitalizados dentro do episódio, e isso foi muito cringe meo, e quebrou pesado as vibes do negócio, quebrou minha suspensão. Não façam isso, cara. A chance disso envelhecer mal, desse leite azedar, é relativamente algo a se considerar, dado o escopo de todo o resto.