Como desistir da internet?

Sendo alguém, como muitos nascidos nos anos 80, que participou da implementação da internet comercial nos meados dos anos 90, que teve sua própria jornada de amadurecimento em paralelo com essa tecnologia, acompanhando sua infância, adolescência e agora sua passagem de jovem adulto para um “velho adulto”. Estou num processo, postergado inúmeras vezes, de abandonar (dentro do que é possível abandonar dentro do capitalismo tardio), qualquer presença que tenho ou tive em plataformas ditas “redes sociais”, o que basicamente compõem 75% (ou mais) da internet (da superfície) hoje em dia.

Rede Social, uma classificação confusa e cheia de linhas borradas, visto que qualquer coisa hoje em dia vai solicitar um cadastro ou a criação de perfil, por mais mundana a função da plataforma, precisam de qualquer mililitro de dados que é possível retirar de uma pessoa.

Existe uma crescente sensação, que acredito que muitos também tenham, principalmente se você começou a usar a internet entre 1996 e 2000, de que as coisas mudaram demais, para direções não tão promissoras quanto costumávamos acreditar que poderiam ser no final dos anos 90 e na primeira década dos anos 2000. E, pelo menos no meu caso, minha permanência nesses “lugares não-lugares” denominados redes sociais, depois de 2016, foi por um desejo provavelmente originado de uma “negação” ou esperança “nostálgica” pela internet com a lógica “pré-aplicativo”, um período que pelos meus cálculos, existiu até aproximadamente 2010, onde a adesão de smartphones ainda não era significativo.

Alguns usam o termo “teoria da internet morta”, algo que não soa tão absurdo agora, pois já foi constatado, num último relatório da imperva.com em 2024, de que cerca da metade do tráfego online é proveniente de robôs.

Gráfico tráfego online por bots na internet
Gráfico tráfego online por bots na internet

Dentro desse gráfico temos todo tipo de robô, os “do bem” e os “do mal”. Mas basicamente, isso se traduz visualmente na crescente manifestação de “não-pessoas” nas interações dessas ditas redes sociais, que mais separam do que socializam. Quase todas as interações no Facebook (e seus braços Instagram e Threads) no ex-twitter, tiktok etc, são bots conversando entre si.

Tudo que existe fora dos silos de conteúdo e interações dessas redes sociais, se tornou um deserto homogeneizado. 

Muito pelas demandas de padronização promovidas pela lógica de SEO (Search Engine Optimization, ou, Otimização para mecanismos de busca), surgiu uma espécie de visual e estrutura padrão para sites, com a finalidade de melhorar o ranking de indexação de um site na ferramenta de pesquisa (Google, Bing etc). A proposta do SEO é estruturar um site de uma maneira que ele alcance a “graça” do avaliador de indexação, as “google spiders” um termo descolado para robôs, esses considerados “do bem”.

Com o advento da inteligência artificial, mais especificamente a caixa de pandora da I.A. generativa. Esses sites, de dois anos para cá, começaram a apodrecer exponencialmente, e geralmente são os primeiros resultados nas buscas em qualquer site de pesquisa.

Sites que são basicamente “mashups” e remixes de outros sites, feitos por chat GTP e variantes, que já eram, por sua vez, outros mashups e remixes, feitos por empresas de tráfego online, que copiavam de sites produzidos por profissionais com longuíssimas cargas horárias e remunerações meramente ilustrativas. 

Bebê pavão real vs bebê pavão gerado por inteligência artificial
Filhote de pavão real vs. filhote de pavão gerada por inteligência artificial.

No Google images, qualquer coisa que você busque, por mais banal que seja, vai te entregar boa parte do conteúdo gerado por alguma I.A. generativa. O Pinterest foi tomado de assalto por conteúdo gerado por máquinas. A tendência é que o conteúdo dessa “natureza não natural” ultrapasse o volume de registros “reais” dos termos procurados. (Jean Baudrillard sorri.)

Aparentemente o “todo” do que é chamado de “internet da superfície”, a internet detectada e indexada nos buscadores, se tornou um grande amálgama de panfletagens, muitas vezes idênticas. Uma coleção de peças publicitárias ultra-otimizadas para alcançarem a maior posição possível na listagem da pesquisa. O conteúdo é bom porque indexa melhor, na lógica do SEO. Eu trabalhei por muitos anos seguindo essa cartilha mandatória do segmento, participei.

No entanto, eu enxergo esses detalhes não como estágios finais da vida da internet. Dependendo do recorte, é possível afirmar que muitas “internets” já morreram, e o que toma seu lugar é uma espécie de monstruosidade cada vez mais distante da função “pro difusão do conhecimento” e socialização, celebrada por muitos teóricos encantados dos anos 80 e 90, e cada vez mais, promiscuamente envolvida em lógicas de mercado. Como profetizado por Lyotard em 79, a baixa órbita do planeta pertence ao capital privado, e o estado é apenas mais um usuário.

O meio digital nos entregou muito, enquanto simultaneamente nos tirou muito mais, sem que percebêssemos. Com apenas um valor de assinatura, temos acesso ao volume de filmes que nenhuma locadora comportaria, até o momento que o serviço comece a escolher o que você pode assistir ou não, ou pior, alterar esse arquivo numa tentativa de “higienizar” o passado. Agora é tarde demais para retroceder a mentalidade da mídia física. Algo “é seu” até o momento que não é mais, nesse contexto da digitalização e stream, o valor pago ao acesso não corresponde mais a aquisição do produto em si. Tudo é um produto, mas você não pode possuí-lo.

Você pode trabalhar de casa, mas a linha que separa as horas da sua  vida pessoal das suas horas trabalhadas desapareceu. O que antes era uma conveniência, se tornou a regra. E a opção de se retirar não existe mais. Não há emprego sem um smartphone.

A lógica da “brandificação” do produto se estendeu à “brandificação do indivíduo”. A internet, antes um lugar para pseudônimos e avatares ilustrativos, agora demanda que a versão digitalizada do usuário seja mais real do que ele mesmo, construído e curado em seus mínimos detalhes, hiper-real, algo inescapável no contexto mais pervasivo na “indústria da empregabilidade”, ser avaliado não só pelas suas capacidades de exercer uma profissão, mas também na sua capacidade ser um “eu ideal” perante o avaliador da vaga. Aqui, LinkedIn e Instagram operam em dupla. Você é digno a partir do momento que sua narrativa fotográfica corrobora seu sucesso.

As características definidoras da condição pós-moderna entram em sobrecarga na dissolução das metanarrativas. A lógica do “sempre-online” fomenta e incentiva a fragmentação de uma já fragilizada unidade social, em comunidades ainda menores, com percepções de mundo cada vez mais específicas e inegociáveis, mas facilmente cooptadas pela polêmica do dia. Tática carinhosamente batizada pelo segmento publicitário como “engajamento por ultraje” (termo antes amplamente mencionado, e que “misteriosamente” desapareceu do mapa). O “blacklash” de uma história, é a história.

Toda e qualquer teoria crítica é fagocitada pela indústria da cultura e recondicionada, pautada por analytics que entregam métricas e hábitos de consumo em tempo real. Chegamos num momento da produção cultural onde se fabricam filmes para serem assistidos na televisão enquanto se assiste a outros na tela menor. O vagão da produção audiovisual já passou por muitas estações da representação da representação do real, e se encontra num limbo imagético gradativamente escalado pela I.A. generativa.

Pensar muito sobre essas coisas me direcionou a esse movimento de desligamento das plataformas sociais (as que tenho o luxo de poder me desligar), sem nenhum objetivo revolucionário, mas mais como uma revolução pessoal, de buscar tentar usar a internet de um jeito que considero mais produtivo, algo mais próximo a proposta de internet que me encantava no final dos anos 90 e começos dos anos 2000. Neste caso, escrevendo em um blog, algo relativamente afastado do olho do furacão de algoritmos de timeline, e arremessado à sorte da indexação automatizada do Google.

Como um náufrago arremessa uma garrafa ao mar aberto.

Essa é uma primeira postagem relacionada a internet e minha experiência crescendo com ela, ter direcionado minha formação para trabalhar com ela  e as percepções que surgem sendo um usuário e um “funcionário” das muitas construções que existem dentro desse ambiente virtual. Retomando o processo que deixei estacionado desde 2022.

Picture of Ved

Ved

Alguém com relativo tempo livre para escrever umas coisas aí.
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Ved

Alguém com relativo tempo livre para escrever umas coisas aí.

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